É normal aos homens, numa visão etnocêntrica, se apegar às diferenças entre as religiões para reafirmar a sua. São comuns as críticas aos santos, aos orixás, à postura dos evangélicos, aos costumes dos hippies, ao modo de vida dos muçulmanos, enfim, o que é diferente a uma cultura é considerado bizarro, estranho para outra e por isso merecedor de críticas.
No entanto, como afirma o relativismo, todo julgamento é relativo a uma cultura. Não dá para julgar as práticas e os costumes alheios sem conhecê-los. É necessário se colocar no lugar do outro, entender como o outro vê o mundo para só então formar uma opinião sensata. Isso implica numa observação participante e num convívio prolongado com outras culturas sem tentar compará-las com o que julgamos como mais correto.
Assim, os trabalhos de campo são fundamentais para tentarmos relativizar o que consideramos diferente. Em maio de 2008, minha equipe de antropologia fez duas visitas a Igreja Universal do Reino de Deus. Primeiro, participamos de uma sessão do descarrego e na segunda visita acompanhamos o trabalho de um grupo de jovens.
Alguns dias depois, eu e outra equipe fomos ao Terreiro de Candomblé Ilê Axé Opô Afonjá, na Rua Direita de São Gonçalo do Retiro. Fundado em 1910 por Eugênia Anna dos Santos (Mãe Aninha), ele é um grupo dissidente do Terreiro da Casa Branca. Na época, fizemos uma visita em dia comum e participamos de apresentações dos alunos da Escola Municipal Eugênia Anna dos Santos que funciona dentro do terreiro.
No dia, as crianças retratavam a criação do mundo e o mais interessante era que elas passavam para nós ao mesmo tempo a visão do candomblé e a visão da ciência sobre o tema. Além disso, elas aprendem dentro da escola algumas palavras da língua yorùbá. O idioma é falado pelos povos yorùbás há muitos séculos e é falado também na Nigéria, Benin, Togo e Serra Leoa. No continente americano, ele é utilizado em ritos afro-brasileiros. Por essa iniciativa, a Escola é pioneira no Brasil e é a concretização do sonho de Mãe Aninha e de Mãe Stella de Oxossi – desde o dia 11 de junho de 1976, Mãe Stella tomou posse como Iyalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá por morte de Mãe Ondina de Oxalá.
Desta vez, meu retorno à Rua Direita de São Gonçalo do Retiro foi em nome da disciplina Cultura Baiana e Brasileira e antecipo de imediato que voltar ao Ilê Axé Opô Afonjá foi uma experiência incrível. Dia 26 de outubro deste ano, uma segunda-feira, o terreiro estava em festa por Omolu, também conhecido como Obaluaiê. O coração diante da porta do barracão ficou apertado, quase a saltar pela boca, mas no final estava mansinho. Eu e meus colegas de sala nunca tinham estado em um terreiro em dia de festa, portanto, não sabíamos o que esperar, estávamos diante do desconhecido, eis o motivo da ansiedade.
A música e a dança são elementos fundamentais do candomblé, acredito que são inseparáveis. Os atabaques começam a festa e aos poucos as pessoas iniciadas no candomblé pela Iyalorixá vão chegando em grupos ao barracão. Eles formam uma roda e começam a dançar. Noto que a cada nova ‘música’ tocada nos atabaques, os gestos da dança mudam, ora os braços balançam de frente para trás, ora as pessoas intercalam os gestos com rodopios, ora jogam os braços em direção ao centro da roda. Lembro como as pessoas presentes, aquelas que estavam ali para assistir, também dançavam e cantavam as músicas com desenvoltura. Algumas crianças ficavam, inclusive, atrás dos tambores formando uma espécie de coral. Enquanto isso, nós, que não crescemos naquela cultura, não conseguíamos compreender o que as letras diziam.
Somente ao chegar ao Ilê Axé Opô Afonjá lembrei que cada orixá tem sua cor preferida. Fui de vermelho e por sorte, fui informada que as cores de Omolu são preto, vermelho, branco e amarelo ou dourado. Ou seja, minha roupa não estaria dissonante. Portanto, poderia me sentir melhor.
No começo da festa, não fiquei surpresa, a música e a dança eram agradáveis, me senti à vontade e percebi como a música baiana incorpora a sonoridade dos atabaques, o que faz da música brasileira ainda mais diversificada. Os adeptos do candomblé relatam que é em uma roda que define-se o sentimento pela religião, pois eles festejam a natureza, festejam o nascimento, festejam os orixás e que vai pela primeira vez e se apaixona pelo que acontece durante a festa, não deixa o candomblé nunca mais.
É um momento mágico, de fato, vê as pessoas demonstrando tradição, responsabilidade, respeito e muita alegria por adorar os seus orixás, que são, na verdade, os descendentes dos africanos e também do povo brasileiro formado pelos escravos, índios e portugueses. Somos descendentes destas três matrizes étnicas e logo, também somos descendentes dos orixás. Mas quem é do candomblé percebe os orixás movendo suas vidas e mostrando-lhes o caminho a seguir.
Imagino como é uma alegria para eles sentir os seus deuses em forma humana, pois em outras religiões, Deus e os deuses são colocados como divinos e não possuem os defeitos humanos. Já no candomblé, quando os orixás se manifestam nas pessoas iniciadas, é uma alegria, visto que todos presentes no barracão podem se energizar. Os deuses do candomblé possuem personalidade, habilidades e características humanas como a raiva. Omolu, por exemplo, é o Deus da Morte, ele tem o poder de enviar e curar doenças epidêmicas e individuais.
Confesso que me senti apreensiva quando os orixás começaram a se manifestar por nunca ter presenciado tais cenas. Do momento de transe, posso resumir que a princípio fiquei um pouco assustada por ver filhos e filhas de santo rodopiando, alguns virando os olhos e outros gritando. Abaixei a cabeça várias vezes para evitar mirá-los. Mas aos poucos, observei que as pessoas iam se sentindo energizadas e como os orixás trazem força e proteção. Assim, eu não sofreria nenhum mal. Na segunda etapa, os filhos de santo entravam no barracão vestidos como Omolu – com corpos cobertos por véus e vestes de palha. Esta etapa, para mim, foi a mais bonita, o primeiro ‘impacto’ já havia passado e a minha opinião sobre a festa estava formada. No final, era a hora da oferenda: pipoca sem sal, feijão-preto e feijão-fradinho, aberém, servidos em folhas de bananeira. Os visitantes recebem as oferendas das mãos dos filhos de santo.
Lembro que participei da festa e somente depois, quando cheguei em casa, pesquisei sobre Omolu. Além disso, compreendi, pesquisando, o porquê de todas as pessoas que estavam presentes no barracão, exceto as que não eram do candomblé, batiam a mão direita no solo três vezes a cada nova música dos atabaques. Esta é a saudação de Omolu acompanhada pelas palavras “Atotô, Atotô, Atotô”, que significa “Silêncio, Silêncio, Silêncio, ele está entre nós! Ele está entre nós!”.
Pierre Verger já dizia que “O Candomblé sobrevive até hoje porque não quer convencer as pessoas sobre uma verdade absoluta, ao contrário da maioria das religiões”. Essa religião trazida ao Brasil pelos escravos é símbolo de resistência, luta e força. Minha experiência no Ilê Axé Opô Afonjá foi muito importante, pois vi todos os preconceitos que escuto em segmentos da sociedade caírem. Saí de lá com uma energia boa, porque percebi a expressão em cada rosto daqueles que conseguiam se sentir na presença de uma entidade superior. As crianças crescem naquela cultura, seguem os passos dos seus pais, sabem o yorùbá e vão manter vivas as raízes do Candomblé.